A TOALHINHA DE NATAL
Não sou do tipo que se comove com
comercial de margarina no Natal e aproveito os feriados para mexer nas minhas
coisas, organizar armários, sem necessariamente me sentir miserável por não ter
uma família grande e festiva. Gosto principalmente de achar coisas de que não
mais me lembrava e as ganho novamente como se novas fossem.
Naquela tarde, uma das gavetas
que acabara de arrumar emperrou e eu não conseguia mais encaixá-la no lugar. A
solução que me ocorreu foi remover todas as gavetas do armário para ver se não
havia algo trancando por trás. Encontrei, nas catacumbas da minha falta de
tempo, uma meia solitária que perdeu seu par há muito tempo e, mais ao fundo,
uma toalhinha de lavabo delicadamente bordada com uma fileira de papais-noéis
amarelados.
Como num portal do tempo, viajei
trinta anos até o dia em que ganhei a toalha, presente de uma aluna.
Professorinha recém-formada, fui contratada para lecionar Português e
Literatura em curso matutino de supletivo. A turma era composta por senhoras já
idosas, mas alegres, interessadas e esforçadas.
Inexperiente, julguei que, pela maturidade, poderiam se deliciar com O menino do Engenho, de José Lins do
Rego, e indiquei o livro para um fichamento.
As senhoras da cidade grande
ficaram horrorizadas com as aventuras de Carlinhos na fazenda do avô e certa
manhã me esperavam consternadas para uma conversa séria. Questionaram o porquê
de eu adotar um livro tão impudico, com meninos fazendo porcarias. “Onde já se
viu, escrever uma coisa dessas”, disse uma delas, apontando um trecho sublinhado em vermelho,
onde se lia “tínhamos as nossas cabras e as nossas vacas para encontros de
lubricidade”. Fui pega de surpresa e não defendi a obra. Seria inútil dizer que
a premiada narrativa de 1932 retratava a realidade de uma época e estava bem
longe de ser uma indecência. Recusaram-se a prosseguir na leitura e indiquei
outro título para o trabalho, que de tão inócuo na literatura nacional, nem me
recordo mais do nome.
Superado o episódio, continuamos
com ótimo relacionamento e no final do ano recebi vários presentinhos, entre
eles a toalhinha primorosamente bordada pela mais idosa da turma, que acredito
estivesse já beirando os setenta anos na época. Hoje, passados mais trinta, a
matemática me faz sentir uma pitada de dor por não conseguir imaginá-la
centenária. Admito sentir certa culpa por não lembrar seu nome, mas me restou a
lembrança de sua habilidade e gentileza em forma de toalha.
Meu primeiro ano como professora
acabou em festa naquela turma de senhoras, mas foi também o meu último ano de
magistério. Em dezembro o diretor daquela escola particular mandava embora todos
os funcionários, porque era época de inflação alta e os contratados ganhavam
aumentos que o mercado não acompanhava. Em fevereiro, fazia nova seleção,
preenchendo o quadro de professores com recém-formados, pagando muito menos e
aumentando os lucros. Foi assim que desisti da minha vocação de melhorar o
mundo em sala de aula.
Fui trabalhar numa multinacional,
apartando-me das Letras. Como alento, escrevia poesias tristes na hora do
almoço:
Escritório
sina de todo dia
multidão comprimida
na total monotonia.
A porta fecha
deixando a vida lá fora
o relógio é moroso
e a saída demora.
Presos na caverna de luxo
onde o sol não entra
onde a chuva não molha
e até o ar é condicionado [...].
Passei por uma enchente nessa
época em que trabalhava no escritório e perdi quase tudo o que havia de
material na minha vida. Só me restaram as coisas laváveis ou as que não estavam
comigo. Após alguns dias, recebi os livros que havia emprestado, gravações com
as músicas favoritas, um álbum de fotos, meu caderno de poesias e outras coisas
mais. Devagar, fui me resgatando nesses pedacinhos espalhados de mim.
Depois de todos esses anos, a
velha toalha de Papai Noel, que resistiu à enchente e bravamente me acompanhou,
mesmo escondidinha no fundo do armário, mostrou a importância de dedicar a quem
nos cerca aquilo que temos de melhor: um trabalho, uma obra, um poema, um
pensamento. Agradeço àquela minha aluna por ter ensinado essa importante lição
à professora: só permanecemos além da própria existência naquilo que
repartimos.
Eliana Ruiz Jimenez
Classificado para antologia
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