quarta-feira, 15 de julho de 2015

A PLATAFORMA


A plataforma

O enorme ônibus articulado seguia pela via exclusiva, cortando o congestionamento da avenida, como última artéria em que o sangue ainda flui no paciente agonizante.
No ponto, a mãe, com o filho cadeirante, sinalizou para o motorista, que imediatamente parou e acionou a ruidosa plataforma elevatória. A lentidão do equipamento parecia incomodar os passageiros, que conferiam freneticamente o horário nos relógios. Finalmente o elevador trouxe a bordo uma mulher já idosa, com um rapaz aparentando tetraplegia. Não acostumada com o procedimento, a mãe atou com muita dificuldade o cinto de segurança na cadeira. Ninguém ofereceu ajuda ou moveu um só olhar na direção dos recém-chegados. O ônibus seguiu. Cada passageiro mergulhado na tela do seu celular,  conectado com o mundo e desconectado do que acontece à sua volta. A dor do outro não é postagem curtida em redes sociais. Mais isolado do que nunca, segue calado o cidadão para mais um dia de trabalho.
Ao observar a cena, relembrei um tempo não muito distante, uma época em que o urbanismo sequer cogitava a elaboração de projetos de edificações inclusivas e o máximo da modernidade era possuir um aparelho de vídeo cassete. 
Sempre houve deficientes físicos que precisavam de transporte público, e a cena se repetia mais ou menos assim: quando o ônibus parava no ponto onde havia um cadeirante, imediatamente dois passageiros desciam pela porta de trás e o carregavam para dentro do veículo. Essa solidariedade fazia com que as pessoas conversassem entre si; havia muita troca de  gentilezas, um ar de satisfação pela boa ação realizada pairava no ar. Parecia não haver tanta pressa, os dias passavam mais lentamente.
Nem as universidades eram preparadas para receber portadores de necessidades especiais. Nos meus tempos de faculdade, certa vez, um famoso escritor cadeirante havia aceitado o convite para proferir uma palestra aos alunos do curso de Letras. O auditório ficava no quarto andar. Houve até certa disputa para saber quem teria a honra de levar o ilustre convidado escadaria acima. Chegaram carregando a cadeira e o escritor com satisfação triunfal. Havia uma corrente de emoções fraternais que nos aproximava daqueles que enfrentavam mazelas, e a alegria por poder ajudá-los era ilimitada.
Hoje em dia, por força de lei, a acessibilidade está por toda parte. A solidariedade se revestiu de tecnologia, e caminhar pela cidade vendo as calçadas sendo rebaixadas e elevadores para deficientes físicos sendo instalados nos traz uma sensação boa de aperfeiçoamento da maneira de viver.
A sociedade evoluiu e se transformou mediante a utilização de equipamentos inclusivos, mas deixou no passado o sorriso, a empatia e a disposição em ajudar.

Crônica classificada no Prêmio Sesc de Literatura - Rubem Braga, DF.
Eliana Ruiz Jimenez





Um comentário:

RENATO ALVES disse...

Excelente crônica,merecidamente premiada! Você flagrou dois aspectos da modernidade de resultados contrastantes: a acessibilidade aos transportes públicos e a praga dos "smartphones" tornando cada vez mais áridas as relações humanas.