sábado, 30 de agosto de 2014

Tração humana



 TRAÇÃO HUMANA      
                                                   
Crônica selecionada para antologia no Prêmio SESC de Literatura: Crônicas Rubem Braga – Brasília/DF – 2013.

Sábado, 8h de uma manhã de inverno. Dirigia devagar sem familiaridade com as ruas daquele bairro distante. Numa colina logo à frente reduzi a velocidade ao ver uma carroça de duas rodas amontoada com toda sorte de materiais recicláveis, reaproveitáveis ou nem tanto. Pilhas de papelão, teclados de computador, monitores antigos, embalagens plásticas, vidros e até uma cadeira de três pés.

A carroça vencia a subida metro a metro penosamente e não havia espaço para ultrapassagem. Atrás de mim o motorista de um carro de luxo começou a buzinar incessantemente. Pelo retrovisor observei que fazia gestos obscenos e depois começou a bater ensandecido com as duas mãos no volante num acesso de fúria.

Tentou por duas vezes me ultrapassar de maneira perigosa, mas acabou demovido do intento pelo fluxo de carros em sentido contrário.

Sem pressa e somente quando tive segurança, ultrapassei a carroça. Observei o homem que a arrastava: idoso, com longa barba branca, vestindo uma roupa surrada e descalço. Confesso que se tal carga fosse conduzida por um cavalo, já me traria comoção pelos maus-tratos ao animal, mas era muito pior. Uma carroça de despojos de toda sorte conduzida por tração humana, na verdade tração desumana.

Assim que terminei a ultrapassagem, o carro de luxo já passou por mim e mais uma vez acionou a buzina registrando o seu protesto por ter sido retido em seu trajeto.

Trocamos olhares durante os segundos em que nossos carros ficaram emparelhados. Tinha o semblante enfurecido e balbuciou um xingamento na minha direção, daqueles fáceis de entender por leitura labial. Seguiu o homem do carro de luxo cantando pneus, indiferente ao padecimento alheio.

Observei mais uma vez o carroceiro. Um pobre coitado que carregava o peso do descaso de uma sociedade desigual. Um homem sem chances, sem dignidade, em estado de miséria, cuja visibilidade passa a existir somente no momento em que atrapalha o fluxo de trânsito.

Acabei por me sentir mal em também passar por aquele homem sem dar-lhe nenhum conforto além de uma solidariedade em pensamento, que de nada lhe adiantaria.

As pessoas estão preocupadas apenas com a própria vida, no máximo com a própria genética, cuidando dos seus familiares sem se imaginarem como componentes de uma família única e universal de seres humanos com as mesmas necessidades e os mesmos anseios.

A indiferença precisa ser combatida. Olhar o outro como o próximo, espalhar atitudes fraternas, atenuar fronteiras, não separar as pessoas por crenças, opções ou religiões é o caminho que leva ao bem comum.

No meu trajeto naquela manhã fria, sonhei com um mundo de mãos justapostas, iguais e diferentes, calejadas, bem tratadas, coloridas, antigas, recém-nascidas, mas que fossem mãos enlaçadas, engajadas na busca de um novo tempo de trabalhos dignos, pés calçados e sofrimentos apaziguados.


Eliana Ruiz Jimenez

Um comentário:

Dáguima Verônica disse...

Uma bela crônica para ser lida, refletida e olocada em prática.
Parabéns, Eliana, pela sua luta em prol de um mundo melhor, mais humano, mais justo.Grande abraço.